Sobre o problema da penhora dos bens alimentares de uma
associação com vista à sua doação a famílias carenciadas, não posso deixar de
estranhar o muito que foi dito e escrito na comunicação social sem que nunca o
cerne da questão fosse abordado – não foi abordado o problema central: pode uma
autoridade administrativa exercer funções jurisdicionais?
Podem, face à Constituição da República, os serviços
administrativos penhorar bens e vendê-los?
E, no exercício das suas funções, cumprem a Lei?
À luz da Lei – artigo 736º, c), do Código de Processo
Civil – são impenhoráveis os bens cuja apreensão seja ofensiva dos bons
costumes ou careçam de justificação económica, pelo seu diminuto valor venal.
Ora, penhorar alimentos de uma associação que existe apenas para auxiliar os
mais desfavorecidos ofende os bons costumes. Além disso, sendo bens perecíveis,
o seu valor venal, passados uns dias, é praticamente zero, porque apodrecerão.
Segundo a minha experiência, nenhum Juiz de Direito
ordenaria a penhora de bens alimentares perecíveis, fossem ou não, destinados a
serem doados.
Isto surgiu porque as autoridades administrativas querem mostrar serviço e, como tal, fazem o que
fazem!
E por isso não resisto a republicar a minha opinião de
2011, sobre as “penhoras administrativas”
“ Os processos de
execução fiscal que correm os seus termos nos Serviços de Finanças, nas Câmara
Municipais e na Segurança Social serão processos administrativos ou judiciais?
Se são da competência da administração, enquanto órgão executivo cujo
vértice é o Governo (art.º 185º da Constituição da República Portuguesa), não
deixam de ser processos administrativos. No entanto, não tenho grandes dúvidas
se o processo “a se” não é ele mesmo processo judicial.
É que a incompetência territorial em processo judicial (art.º 46º Código de
Processo Tributário) só pode ser arguida até findar o prazo de oposição, que é
de 20 dias após a citação ou a primeira penhora (art.º 285º CPT), é porque o
próprio processo de execução fiscal é judicial e, consequentemente, deveria
correr os seus termos num Tribunal Administrativo e Fiscal.
Se se considerar que o processo de execução fiscal é um puro processo
administrativo [que não é, como se viu], certos actos praticados pelo Chefe dos
Serviços de Finanças, enquanto autoridade administrativa, são actos judiciais,
como é o caso paradigmático da penhora e da posterior venda que é anunciada
como sendo “venda judicial por meio de proposta por carta fechada” e, se o não
for, como “venda extrajudicial por negociação particular”.
A penhora é um acto judicial
(cfr. artigo “Penhora” in “Grande
Enciclopédia Portuguesa e Brasileira” e in “Grande Dicionário de Língua Portuguesa” da Sociedade de Língua
Portuguesa, editado por Amigos do livro editores (1981) e Ana Prata, in “Dicionário
Jurídico”, Pereira e Sousa,
citado por José Alberto dos Reis, in “Processo
de Execução”, vol 2, pág. 89, Castro
Mendes, in “Acção Executiva”, edição da AAFDL (1980), pág. 73, Antunes Varela, in “Das Obrigações em
Geral”, 2ª edição, 1º Vol, pág. 97, Galvão
Telles, in “Direito das Obrigações”, 2ª edição, pág. 50, Almeida Costa, in “Direito das
Obrigações”, 3ª edição, pág. 706).
E como tal tem que ser ordenada por um Juiz, sob pena de usurpação de
poderes (Marcello Caetano, in “Manual
de Direito Administrativo”, 10ª edição (reimpressão), tomo I, pág. 498), pois a
penhora subtrai os bens a ela sujeitos à esfera jurídica do executado (art.º
819º CC).
E tanto assim é, que o arresto em bens do executado tem de ser ordenado
pelo juiz do Tribunal Administrativo e Tributário para posterior conversão,
pelo próprio Juiz, em penhora (cfr. art.º 136 e 214º CPPT). É que o arresto,
tal como a penhora, também é um acto judicial (Pires de Lima e Antunes Varela,
in “Noções Elementares de Direito Civil”, 4ª edição, 1º vol, pág. 385, Palma Carlos, in Direito Processual
Civil – Acção Executiva” (1967), pág. 121, Almeida
Costa, in Direito das Obrigações”, 3ª edição, pág. 612).
Assim, não faz sentido que um arresto, uma apreensão de bens, tenha de ser
ordenado pelo Tribunal e a penhora, apreensão de bens para posterior venda,
afastando o seu proprietário de os poder dispor a seu bel-prazer, pois que tais
actos são ineficazes face ao exequente (art.º 815º CC), possa ser efectuado
pelo Chefe dos Serviços de Finanças – autoridade administrativa.
Ora, se o chefe dos Serviços de Finanças não pode praticar o menos (o arresto) também não poderá praticar o mais (a penhora).
É certo que na vigência do revogado Código de Processo das Contribuições e
Impostos, o, ao tempo, Chefe da Repartição de Finanças tinha poderes para
mandar proceder à penhora. Mas ali, fazia-o, não como chefe de Repartição de
Finanças, mas como Juiz-Auxiliar (art.º 40º, § único, do revogado CPCI).
Agora, actua apenas, enquanto Chefe dos Serviços de Finanças, como
autoridade administrativa, pois aquela figura do “juiz-auxiliar” foi
banida do Código de Processo Tributário (cfr. o último parágrafo, in fine, do
relatório preambular do Decreto-Lei nº 154/90, de 23 de Abril, que aprovou o
CPT, e do CPPT, aprovado pelo DL 433/99, de 26 de Outubro).
Assim sendo, como é, o art.º 193º do
CPPT é inconstitucional por permitir que uma autoridade administrativa, parte
interessada no pleito [não actua como um terceiro imparcial], ordene a penhora,
subtraindo os bens a executado, para, posteriormente, proceder à sua venda
judicial.
“Só os tribunais devem exercer a função de declarar e
realizar coercivamente os direitos” (Jorge Miranda,
in “Manual de Direito Constitucional”, tomo IV, pág. 254 – sublinhados meus) porquanto
os Tribunais são órgãos de soberania com competência para administrar a Justiça
em nome do Povo em obediência ao princípio político-constitucional da separação
de poderes, pedra de toque do Estado de Direito Democrático baseado na divisão
tripartida de poderes que é o “princípio
fundamental da Constituição” (Hesse,
citado por J. J. Gomes Canotilho in “Direito Constitucional”, 3ª edição, pág.
314).
A Lei Geral Tributária, aprovada pelo Decreto-Lei nº 398/98, de 17 de
Fevereiro, com início de vigência a 1 de Janeiro de 1999, no seu artigo 103º,
nº 1, vem, finalmente(!), dizer, preto no branco, que “o processo de execução fiscal tem natureza judicial, em prejuízo da
participação dos órgãos da administração tributária nos actos que não tenham
natureza jurisdicional”. E o nº 2 do mesmo artigo salienta que é “garantido aos interessados o direito de
reclamação para o juiz da execução fiscal dos actos materialmente
administrativos praticados por órgãos da administração tributária, nos termos
do artigo anterior”.
E na senda desta arrepiante desjudicialização da justiça tributária, foi
alterado o nº 2 do artigo 245º CPPT pelo artigo 126º da Lei 55-A/2010, de 31 de
Dezembro, que aprovou o Orçamento do Estado para 2011, no sentido de, agora,
serem os senhores Chefes dos Serviços de Finanças a verificarem e graduarem os créditos após as vendas “judiciais” dos
bens dos devedores ao Fisco.
Segundo a melhor hermenêutica, os senhores chefes dos Serviços de Finanças,
no uso das suas competências, podem praticar actos (administrativos, claro!)
nos processos de execução fiscal, deles ficando afastada a possibilidade
prática de actos jurisdicionais, como sejam a penhora e a venda de bens e a
verificação e graduação dos créditos. E dos actos (administrativos) por eles
praticados cabe recurso para o Juiz da execução.
O princípio da legalidade, da consagração constitucional, impõe que a
actuação da administração fiscal o seja no mais rigoroso cumprimento da lei
positiva, como o são as normas constantes dos diplomas aprovados, referendados
e publicados no Diário da República.
Se assim é, efectivamente, num Estado de Direito Democrático, como o é a
República Portuguesa, onde estão os órgãos aos quais cumpre a fiscalização do
cumprimento das leis por banda de todas as autoridades administrativas?
É que basta olhar-se para as páginas dos jornais para se verem anunciadas
centenas de “vendas judiciais” pelas autoridades administrativas – Serviços de
Finanças, Câmaras Municipais e Segurança Social – ao arrepio da Lei (e da
Constituição) e sem que haja intervenção de quem de Direito.
O Povo, em nome de quem são sempre feitas as leis, anda incrédulo: afinal
as lei impressas na Folha Oficial são, ou não, para serem cumpridas como nelas
se contém? É a República Portuguesa um Estado de Direito Democrático assente na
divisão tripartida de poderes e no respeito pela Constituição e pelas leis ou
é, como está, agora, em moda dizer-se, uma “república das bananas”?
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Nota: o legislador anda muito distraído: a Lei 55-A/2010 ainda fala em
“Tribunais Tributários de 1ª Instância” quando, há muito, foram substituídos
pelos Tribunas Administrativos e Fiscais!
IN Jornal de Matosinhos nº
1786, de 13 de Março de 2015